29 outubro 2009

Sobre os milagres

Por C. S. Lewis

Só conheci uma pessoa na minha vida que disse ter visto um fantasma. Era uma mulher; e o mais interessante é que ela, antes de ter visto o fantasma, disse que não acreditava na imortalidade da alma e, depois de o ter visto, continuava a não acreditar. Ela pensava que era uma alucinação. Noutras palavras, ver não é acreditar. É a primeira coisa que deve estar clara quando se fala em milagres. Qualquer que seja a experiência que tenhamos, não a vemos como sendo milagrosa se já confiamos numa filosofia que exclui o sobrenatural. Qualquer evento que reclamamos como milagre é, em última análise, uma experiência recebida pelos sentidos; e os sentidos não são infalíveis. Podemos sempre dizer que fomos vítimas de uma ilusão; se não acreditarmos no sobrenatural é o que diremos sempre. Assim, quer os milagres tenham cessado ou não, aparentemente cessaram no nosso mundo ocidental na medida em que o materialismo se tornou o credo popular. Pois não nos enganemos. Se o fim mundo nos aparecesse com os sinais literais do Apocalipse, se o materialista moderno visse com os seus próprios olhos os céus a desaparecerem e o grande trono branco a aparecer, se ele tivesse a sensação de ser lançado no lago de fogo, continuaria indefinidamente, no próprio lago, a ver a sua experiência como uma ilusão e a tentar encontrar uma explicação na psicanálise ou na patologia cerebral. A experiência por si só não prova nada. Se um homem duvida se está a sonhar ou acordado, nenhuma experiência pode resolver a sua dúvida, pois toda e qualquer experiência pode fazer parte do seu sonho. A experiência prova isto, ou isso, ou aquilo, de acordo com os nossos preconceitos.

A experiência de um milagre requer duas condições: primeiro temos que acreditar na estabilidade normal da Natureza, o que significa que reconhecemos que os dados oferecidos pelos nossos sentidos ocorrem em padrões regulares; segundo, temos que acreditar numa realidade para além da Natureza. Quando as duas crenças são sustentadas - e nunca antes disso - podemos abordar com uma mente aberta as várias narrativas que afirmam que esta realidade super ou extra natural tem, por vezes, invadido e incomodado o conteúdo sensível do espaço e do tempo que faz o nosso mundo "natural". A crença numa realidade sobrenatural não pode ser nem provada nem refutada pela experiência. Os argumentos para a sua existência são metafísicos e, quanto a mim, conclusivos. Eles realçam o facto de que mesmo que pensemos e ajamos no mundo natural temos igualmente que assumir que pertencemos parcialmente a esse "outro". E para pensar, temos que reivindicar, para o nosso próprio raciocínio, uma fundamentação que não é credível se o nosso pensamento for simplesmente uma função do cérebro e o nosso cérebro um simples produto de um processo físico irracional. E para agirmos, acima do nível do mero impulso, temos também de reivindicar uma fundamentação similar para a nossa capacidade de julgar entre o bem e o mal. Em ambos os casos obtemos o mesmo resultado inquietante: o conceito de "Natureza" em si mesmo é algo que atingimos tacitamente reivindicando uma espécie de estatuto sobrenatural de nós mesmos.



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LEWIS, C.S., Milagres, São Paulo: Editora Vida

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